Este texto será rotineiro e vulgar. Será sobre a rotina. Tentarei que não seja um rol de queixas infundadas nem um daqueles textos próprios de diários intimistas mas não será, certamente, um texto “útil”.
Tinha prometido, a mim mesma, que não iria sucumbir aos ímpetos poderosos da Razão, que se havia promissoramente assumido como o objecto último desta minha pseudo-reflexão, mas… comecei mal. Tinha logo que declarar a inutilidade do meu texto, de forma pesarosa e ressentida, até arrependida!
Começa tudo de manhã. Pré-formatad@s, levantamo-nos a tentar dar um sentido ao toque estridente do despertador.
(Tenho de ir trabalhar.)
Pelo caminho, tentamos dar um sentido ao facto de optarmos por transportes públicos ruidosos, em vez de ter chamado um táxi ou tirado o carro da garagem.
(Tenho de poupar dinheiro.)
À chegada ao local de trabalho, urge a necessidade de dar um sentido àquilo que fazemos.
(Tenho de ganhar dinheiro.)
Decorrem as horas e o dia pede, ele mesmo, um sentido.
(Tenho de parar de pensar estas coisas.)
Um despertador nada vespertino, alimentado de cafeína e pastilhas elásticas de mentol, pede-nos, a nós mesm@s, um sentido.
(Penso nisso depois.)
À saída do trabalho, tentamos dar um sentido àquela pressa de chegar a casa.
(Tenho de ir descansar.)
Pelo caminho, o dia, no seu fecho, pede, novamente, um sentido.
(Tenho de ir descansar.)
Pelo caminho, o dia, no seu fecho, pede, novamente, um sentido.
(Mais tarde.)
À chegada a casa, todas as coisas parecem gritar: “EU SOU O TEU SENTIDO!”. Reclamando a atenção para si mesma, a despensa cheia grita que deu um sentido ao dia. Ela é a razão e fim último de todo este esquema rotineiro.
Ao deitar, há um murmurinho que não nos deixa dormir sem a lembrança de que, também e até a cama, sim, a cama!, é o sentido do nosso dia.
Há um vazio do dia, que é o vazio de não termos encontrado sentido para nós mesm@s. A isso, resoluto e sempre útil, o cansaço preenche-o por nós.
(Penso nisso depois.)
E, entretanto, será outra manhã, até chegar o dia em que o único sentido que se pede é uma resposta automática da alma, a uma pergunta nunca formulada, e que dirá apenas: porque sim.
E o cansaço embala-nos o vazio preenchido de (in)utilidades,permitindo-nos concentrarmo-nos no que “tem de ser” e no que “é preciso”, fazendo com que as pessoas tenham uma despensa cheia e uma alma vazia.
Esta é a minha tese sobre a forma como o cansaço é, afinal, o melhor catalisador do sistema capitalista, que reclama produção em nome de um lucro que nunca se sente nessa busca de um sentido.
(Com todo o sentido e sem vazio, um abraço de agradecimento ao Um blogue do caraças pelo convite. ;) )
Um texto de Sílvia Vermelho, licenciada em Ciência Política pelo ISCSP, blogger do Estado Sentido.
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